O santuário do xamã
O ponto focal do santuário é uma caixa ou arca embutida na parede. Nesta arca são guardados os inúmeros feitiços e poções mágicas, sem os quais nenhum nativo acredita que poderia viver. Tais feitiços e poções são obtidos de vários curandeiros cujos serviços devem ser retribuídos por meio de presentes substanciais. No entanto, o curandeiro não fornece as poções curativas para os fiéis, decidindo apenas os ingredientes que nela devem entrar, escrevendo-os, em seguida, em linguagem antiga e secreta. Tal escrita deve ser decifrada pelos herbanários, os quais, mediante outros presentes, fornecem o feitiço desejado.
O feitiço não é descartado depois de ter servido a seu propósito, mas colocado na caixa de mágica do santuário doméstico. Como esses materiais mágicos são específicos para certas doenças, e considerando-se que as doenças reais ou imaginárias deste povo são muitas, a caixa de mágica costuma estar sempre transbordando. Os pacotes mágicos são tão numerosos que as pessoas esquecem sua serventia original, e temem usá-los de novo. Embora os nativos tenham se mostrado vagos em relação a essa questão, só podemos concluir que a ideia subjacente ao costume de se guardar todos os velhos materiais mágicos é a de que sua presença na caixa de mágica, diante da qual os rituais do corpo são encenados, protegem de alguma forma o fiel.
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| Foto: Sebastião Salgado |
Homens da boca sagrada
Na hierarquia dos profissionais da magia, e abaixo do curandeiro em termos de prestígio, estão os que são designados como ‘homens-da-boca-sagrada’. A tribo nutre um misto de horror e fascinação por suas bocas que chega às raias da patologia. Acredita-se que a condição da boca possui uma influência sobrenatural nas relações sociais. Assim, o ritual do corpo, cotidianamente realizado por todos, inclui um rito bucal. O rito consiste na introdução de um pequeno feixe de cerdas na boca, juntamente com uma espécie de creme mágico e, em seguida, na movimentação deste feixe, segundo uma série de gestos altamente ritualizados.
Além deste rito bucal privado, as pessoas procuram um ‘homem-da-boca-sagrada’, uma ou duas vezes por ano. No seu templo, este mago possui uma impressionante parafernália que consiste em uma variedade de perfuratrizes, furadores, sondas e agulhas. O uso destes objetos no exorcismo dos perigos da boca implica em uma quase e inacreditável tortura ritual do fiel e, usando as ferramentas citadas, alarga qualquer buraco que o uso tenha feito nos dentes. Se não se encontram buracos naturais nos dentes, grandes seções de um ou mais dentes são serrados, para que a substância sobrenatural possa ser aplicada. Na imaginação do fiel, o objetivo destas aplicações é deter o apodrecimento dos dentes e atrair amigos. O caráter extremamente sagrado e tradicional do mito fica evidente no fato de que os nativos retornam, todo ano, ao ‘homem-da-boca-sagrada’, embora seus dentes continuem a se deteriorar.
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| Foto: Sebastião Salgado |
O templo Latipsoh
Os curandeiros possuem um templo, o Latipsoh. As cerimônias mais elaboradas, necessárias para o tratamento de fiéis considerados muito doentes, só podem ser realizadas neste templo. Tais cerimônias envolvem não só o taumaturgo, mas também um grupo permanente de vestais que se movimentam nas câmaras do templo com uma roupa distintiva.
As cerimônias no Latipsoh podem chegar a ser tão violentas que surpreende o fato de que uma razoável proporção dos nativos realmente doentes, que entram no templo, consiga se curar. Crianças pequenas, cuja doutrinação é ainda incompleta, costumam resistir às tentativas de levá-los ao templo, alegando que ‘é aonde você vai para morrer’. Os guardiães do templo, não importa quão doente o suplicante esteja ou quão grave a emergência, não admitem o fiel se ele não puder dar um rico presente ao zelador. Mesmo depois que se conseguiu a admissão e se sobreviveu às cerimônias, os guardiães não permitem a saída do neófito até que este dê ainda outro presente.
Poucos suplicantes no templo estão suficientemente bem para fazer qualquer coisa que não seja ficar deitado em suas camas duras. As cerimônias implicam desconforto e tortura. Com precisão ritual, as vestais acordam a cada madrugada seus miseráveis crentes, rolam-nos em seus leitos de dor, enquanto realizam abluções, cujos movimentos formalizados são objeto de treinamento intensivo das vestais. Em outros momentos, elas inserem varas mágicas na boca do fiel, ou obrigam-no a ingerir substâncias que são consideradas curativas. De tempos em tempos, os curandeiros vêm até seus fiéis e atiram agulhas, magicamente tratadas, em sua carne. O fato de que estas cerimônias do templo possam não curar, ou até matar o neófito, não diminui de modo algum a fé do povo nos curandeiros.
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| Foto: Sebastião Salgado |
O santuário privado
A crença fundamental subjacente a todo o sistema parece ser a de que o corpo é feio, e que sua tendência natural é a debilidade e a doença. Encarcerado em tal corpo, a única esperança é evitar essas características, através do uso de poderosas influências do ritual e da cerimônia. Todo o grupo doméstico possui um ou mais santuários dedicados a tal propósito. Os indivíduos mais poderosos desta sociedade têm vários santuários em sua casa e, de fato, a opulência de uma moradia é frequentemente aferida em termos da quantidade destes centros de rituais que abrigam.
Embaixo de uma caixa de mágica existe uma pequena fonte. Todo dia, cada membro da família, em sucessão, entra no santuário, curva a cabeça diante da caixa de mágica, mistura diferentes tipos de água sagrada na fonte e realiza um breve rito de ablução.
Na vida cotidiana, a tribo evita a exposição de seus corpos quando das suas funções naturais. O banho e a excreção são realizados somente na intimidade do santuário doméstico, aonde são ritualizados, fazendo parte dos ritos corporais.
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| Foto: Sebastião Salgado |
O que o texto acima nos diz?
O cotidiano das sociedades humanas é marcado por uma série de rituais. Exercer um olhar etnocêntrico sobre o Outro é um fato constante em nossas vidas. Quais as implicações que esse olhar, carregado de juízo de valores pode provocar? Temos um olhar viciado. Uma lente cultural, na qual enxergamos o mundo de acordo com nossos costumes, crenças e valores. O desafio de driblar o etnocentrismo que está presente a todo instante, ainda mais em um mundo globalizado, marcado por relações inter-étnicas ao redor do planeta.
Devemos estranhar e desnaturalizar comportamentos cotidianos da vida em sociedade, para compreender a construção social de certos comportamentos. Não é um botão que apertamos e pronto: estamos livres do etnocentrismo. Pelo contrário, exige o exercício constante de transformar o familiar em exótico e o exótico em familiar. Esse é o desafio: se colocar no lugar do Outro. Esse processo, constante e interminável, é o que chamamos de exercício da Alteridade. Algumas pessoas depois de ler esse texto, não notam que a sociedade dos Nacirema, nada mais é do que a sociedade Ocidental (Nacirema é American ao contrário!). Assim como nas sociedades indígenas destacadas nas fotos acima, nossa sociedade também é marcada por rituais.
Quem é o exótico agora?
Bibliografia utilizada:
DAMATTA, Roberto. O ofício do etnólogo, ou como ter "Anthropological Blues".MINER, Horace. Ritos corporais entre os Nacirema. (Adaptado)




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