quarta-feira, 11 de maio de 2016

1° Saída de Campo Território Popular

     Os saberes e práticas de sociabilidade de uma cidade se cristalizam a partir de suas vivências diárias e sua construção histórica, que remontam e (re)significam os laços sociais e pessoais da população com sua cidade, em conjunto com a relação criada com sua estrutura patrimonial e a representação destas.

     Posto isso, a compreensão da trajetória histórica e a relação que esta mantém com o desenvolvimento atual de uma cidade são pontos de extrema importância tanto para a exclusão social, quanto para a integração da população deste território.

    Assim sendo, o Coletivo de Educação Território Popular, na busca de uma maior integração dos atores anônimos da constituição atual desta cidade, realizou sua primeira saída de campo com os alunos e alunas pelos territórios negros que marcam a cidade de Porto Alegre. A busca e a compreensão destes espaços trazem um cunho político, forte e bem delimitado sobre o que o Coletivo entende como educação e suas possibilidades transformadoras. A própria oferta deste modelo de educação, chamada de não convencional, revela a preocupação de não se deixar esquecer espaços que são tradicionais para a cultura negra portoalegrense, espaços que marcam a presença negra da cidade e que é embranquecido pela política branca e positivista gaúcha, que ainda se mantém.

    Com esta proposta recebemos, com muito orgulho, a professora Jéssica Melo Prestes, que estuda a constituição, construção e a resistência de diversos espaços negros da cidade. Estes espaços, normalmente locais centrais da cidade, mas desconhecidos ao mesmo tempo, marcaram a construção da cidade e sua história.

      Cada ponto visitado e estudado tem sua história e referência marcados pela dor, como quando é tratado a Igreja das Dores e suas lendas, assim como o Largo da Forca, atual praça Brigadeiro Sampaio. Assim como espaços que são marcos de alegria e resistência a dominação escravista, ou mesmo resistência a sociedade racista do século XX, como os espaços do Bará do Mercado e a Esquina do Zaire, conhecida também como esquina democrática. Estes pontos, que constituíram nosso trajeto no último dia 30/04/16, trazem tanto localizações conhecidas e de grande circulação, mas que fazem parte de uma Porto Alegre imaginada, atualmente, marcada pela construção de alemães, portugueses e italianos, e não pela construção negra. 

         Mas a marca histórica abordada ao estudarmos esta cidade, ao menos na maior parte da explanação sobre a população negra, estava no debate das “higienizações raciais” que ocorreram durante o século XX. Este debate nos trouxe a reflexão sobre a formação dos bairros periféricos da cidade e sua construção histórica. Tal reflexão, foi alicerçada pelo relato da dona Jussara, uma das lideranças da Ocupação Lanceiros Negros, que fica no Centro de Porto Alegre, localizada no cruzamento das ruas General Câmara e Andrades Neves. 

        A Ocupação Lanceiros Negros surge após as remoções e as fortes chuvas que retiraram uma pequena população empobrecida que morava no centro da cidade e foram realocados para diversos pontos da Zona Norte, sem a mínima condição de vida possível. Afastados de hospitais, escolas e transporte este grupo sofreu o mesmo processo relatado pela professora Jéssica e pelos alunos. Foi a experiência mais emocionante desta saída de campo, pois nos trouxe uma realidade, que possivelmente, não era vivida pelos alunos que lá estavam, mas que marca a história de seus pais e seus avós. A Ocupação Lanceiros Negros, que marca um novo ponto da cultura e resistência negra na cidade, foi extremamente acolhedora, mas nos mostrou sua realidade.

         Esta possibilidade de experiência nos traz uma relação diferente para com a cidade, buscando uma forma mais integradora de viver, e com a história da população de Porto Alegre. A saída de campo, nos apresenta uma maneira mais lúdica de ensino e aprendizagem, mas não apenas como material para exemplificações e simplificações de complicados textos acadêmicos. Nos traz uma nova forma de enxergar a cidade e como nos vemos com esta. Nos possibilita uma maior empatia com lutas e dores que diversas pessoas já sofreram, ou ainda sofrem nesta cidade e neste estado. A vivência de poder observar mais de perto o que estudamos nos auxilia para uma maior capacidade de abstração e leitura do mundo a nossa volta, possibilitando, assim, um entendimento das diversas formas de conhecimento e de se apresentar este conhecimento.
      
Prof. Davi dos Santos


segunda-feira, 4 de abril de 2016

Ritos Corporais na Sociedade Nacirema


O santuário do xamã

O ponto focal do santuário é uma caixa ou arca embutida na parede. Nesta arca são guardados os inúmeros feitiços e poções mágicas, sem os quais nenhum nativo acredita que poderia viver. Tais feitiços e poções são obtidos de vários curandeiros cujos serviços devem ser retribuídos por meio de presentes substanciais. No entanto, o curandeiro não fornece as poções curativas para os fiéis, decidindo apenas os ingredientes que nela devem entrar, escrevendo-os, em seguida, em linguagem antiga e secreta. Tal escrita deve ser decifrada pelos herbanários, os quais, mediante outros presentes, fornecem o feitiço desejado. 

O feitiço não é descartado depois de ter servido a seu propósito, mas colocado na caixa de mágica do santuário doméstico. Como esses materiais mágicos são específicos para certas doenças, e considerando-se que as doenças reais ou imaginárias deste povo são muitas, a caixa de mágica costuma estar sempre transbordando. Os pacotes mágicos são tão numerosos que as pessoas esquecem sua serventia original, e temem usá-los de novo. Embora os nativos tenham se mostrado vagos em relação a essa questão, só podemos concluir que a ideia subjacente ao costume de se guardar todos os velhos materiais mágicos é a de que sua presença na caixa de mágica, diante da qual os rituais do corpo são encenados, protegem de alguma forma o fiel.
Foto: Sebastião Salgado


Homens da boca sagrada

Na hierarquia dos profissionais da magia, e abaixo do curandeiro em termos de prestígio, estão os que são designados como ‘homens-da-boca-sagrada’. A tribo nutre um misto de horror e fascinação por suas bocas que chega às raias da patologia. Acredita-se que a condição da boca possui uma influência sobrenatural nas relações sociais. Assim, o ritual do corpo, cotidianamente realizado por todos, inclui um rito bucal. O rito consiste na introdução de um pequeno feixe de cerdas na boca, juntamente com uma espécie de creme mágico e, em seguida, na movimentação deste feixe, segundo uma série de gestos altamente ritualizados. 

Além deste rito bucal privado, as pessoas procuram um ‘homem-da-boca-sagrada’, uma ou duas vezes por ano. No seu templo, este mago possui uma impressionante parafernália que consiste em uma variedade de perfuratrizes, furadores, sondas e agulhas. O uso destes objetos no exorcismo dos perigos da boca implica em uma quase e inacreditável tortura ritual do fiel e, usando as ferramentas citadas, alarga qualquer buraco que o uso tenha feito nos dentes. Se não se encontram buracos naturais nos dentes, grandes seções de um ou mais dentes são serrados, para que a substância sobrenatural possa ser aplicada. Na imaginação do fiel, o objetivo destas aplicações é deter o apodrecimento dos dentes e atrair amigos. O caráter extremamente sagrado e tradicional do mito fica evidente no fato de que os nativos retornam, todo ano, ao ‘homem-da-boca-sagrada’, embora seus dentes continuem a se deteriorar.
Foto: Sebastião Salgado


O templo Latipsoh


Os curandeiros possuem um templo, o Latipsoh. As cerimônias mais elaboradas, necessárias para o tratamento de fiéis considerados muito doentes, só podem ser realizadas neste templo. Tais cerimônias envolvem não só o taumaturgo, mas também um grupo permanente de vestais que se movimentam nas câmaras do templo com uma roupa distintiva. 

As cerimônias no Latipsoh podem chegar a ser tão violentas que surpreende o fato de que uma razoável proporção dos nativos realmente doentes, que entram no templo, consiga se curar. Crianças pequenas, cuja doutrinação é ainda incompleta, costumam resistir às tentativas de levá-los ao templo, alegando que ‘é aonde você vai para morrer’. Os guardiães do templo, não importa quão doente o suplicante esteja ou quão grave a emergência, não admitem o fiel se ele não puder dar um rico presente ao zelador. Mesmo depois que se conseguiu a admissão e se sobreviveu às cerimônias, os guardiães não permitem a saída do neófito até que este dê ainda outro presente. 

Poucos suplicantes no templo estão suficientemente bem para fazer qualquer coisa que não seja ficar deitado em suas camas duras. As cerimônias implicam desconforto e tortura. Com precisão ritual, as vestais acordam a cada madrugada seus miseráveis crentes, rolam-nos em seus leitos de dor, enquanto realizam abluções, cujos movimentos formalizados são objeto de treinamento intensivo das vestais. Em outros momentos, elas inserem varas mágicas na boca do fiel, ou obrigam-no a ingerir substâncias que são consideradas curativas. De tempos em tempos, os curandeiros vêm até seus fiéis e atiram agulhas, magicamente tratadas, em sua carne. O fato de que estas cerimônias do templo possam não curar, ou até matar o neófito, não diminui de modo algum a fé do povo nos curandeiros.
Foto: Sebastião Salgado


O santuário privado

A crença fundamental subjacente a todo o sistema parece ser a de que o corpo é feio, e que sua tendência natural é a debilidade e a doença. Encarcerado em tal corpo, a única esperança é evitar essas características, através do uso de poderosas influências do ritual e da cerimônia. Todo o grupo doméstico possui um ou mais santuários dedicados a tal propósito. Os indivíduos mais poderosos desta sociedade têm vários santuários em sua casa e, de fato, a opulência de uma moradia é frequentemente aferida em termos da quantidade destes centros de rituais que abrigam. 

Embaixo de uma caixa de mágica existe uma pequena fonte. Todo dia, cada membro da família, em sucessão, entra no santuário, curva a cabeça diante da caixa de mágica, mistura diferentes tipos de água sagrada na fonte e realiza um breve rito de ablução. 

Na vida cotidiana, a tribo evita a exposição de seus corpos quando das suas funções naturais. O banho e a excreção são realizados somente na intimidade do santuário doméstico, aonde são ritualizados, fazendo parte dos ritos corporais.
Foto: Sebastião Salgado


O que o texto acima nos diz?

O cotidiano das sociedades humanas é marcado por uma série de rituais. Exercer um olhar etnocêntrico sobre o Outro é um fato constante em nossas vidas. Quais as implicações que esse olhar, carregado de juízo de valores pode provocar? Temos um olhar viciado. Uma lente cultural, na qual enxergamos o mundo de acordo com nossos costumes, crenças e valores. O desafio de driblar o etnocentrismo que está presente a todo instante, ainda mais em um mundo globalizado, marcado por relações inter-étnicas ao redor do planeta.

Devemos estranhar e desnaturalizar comportamentos cotidianos da vida em sociedade, para compreender a construção social de certos comportamentos. Não é um botão que apertamos e pronto: estamos livres do etnocentrismo. Pelo contrário, exige o exercício constante de transformar o familiar em exótico e o exótico em familiar. Esse é o desafio: se colocar no lugar do Outro. Esse processo, constante e interminável, é o que chamamos de exercício da Alteridade. Algumas pessoas depois de ler esse texto, não notam que a sociedade dos Nacirema, nada mais é do que a sociedade Ocidental (Nacirema é American ao contrário!). Assim como nas sociedades indígenas destacadas nas fotos acima, nossa sociedade também é marcada por rituais.

Quem é o exótico agora?



Bibliografia utilizada:

DAMATTA, Roberto. O ofício do etnólogo, ou como ter "Anthropological Blues".
MINER, Horace. Ritos corporais entre os Nacirema. (Adaptado)

sábado, 26 de março de 2016



Um pouco mais sobre Imaginação Sociológica

Wright Mills, sociólogo, ficou conhecido principalmente pelo seu livro  ‘Imaginação Sociológica"publicado originalmente nos Estados Unidos em 1959. Nesse livro  tem por objetivo explicar a importância da sociologia, colocando está ciência como uma qualidade do espírito humano, que ajudaria a perceber o que está acorrendo no mundo e como nos situamos no mundo. Isso seria possível através do conceito de imaginação sociológica. Tal conceito ajudou muitos de seus alunos a se engajarem nos mais diversos movimentos sociais que emergiram no contexto agitado da Guerra do Vietnã, além de levarem a questionarem as razões para tal guerra.

Mills  aponta como um elemento-chave dessa imaginação sociológica a capacidade de poder visualizar a sociedade pelo lado de fora, em vez de fazê-lo apenas pelas perspectiva das experiências pessoais e das pré-concepções culturais. A imaginação sociológica nos permite ver que muitos eventos que parecem dizer respeito ao individuo, na verdade, refletem questões mais amplas. Nesse sentido, trata-se da capacidade de conectar situações da realidade, como os interesses em disputa, percebendo que a sociedade não se apresenta de determinada forma por acaso. Nada é natural, nada é por acaso.

Com essa perspectiva Mills  vai propor como possibilidade da sociologia permitir que o indivíduo relacione sua biografia com a realidade histórico-social, permitindo, assim, a conscientização do agente ao perceber pequenos pontos de cruzamento de sua biografia com a historia geral. E desta maneira perceber o que está acontecendo no mundo, e compreender o que acontece com eles. 

Nesse sentido cabe destacar que a imaginação sociologia  não consistiria simplesmente em aumentar o grau de informação dos indivíduos, e sim para poder perceber, com lucidez, o que está ocorrendo no mundo e o que pode estar acontecendo dentro deles mesmos.

Podemos destacar três elementos fundamentais compõem a imaginação sociológica: a História, a biografia e a estrutura social. Para compreender a experiência individual e avaliar a si mesmo dentro de seu tempo, o indivíduo deve entender como a sociedade veio a ser o que é, como se dá o seu processo de mudança e como sua história está sendo feita.

“Para compreender as modificações de muitos ambientes pessoais, temos necessidade de olhar além deles. E o número e variedade dessas modificações estruturais aumentam à medida que as instituições dentro das quais vivemos se tornam mais gerais e mais complicadamente ligadas entre si. Ter consciência da ideia da estrutura social e utilizá-la com sensibilidade é ser capaz de identificar as ligações entre uma grande variedade de ambientes em pequena escala”.(p.17)



Exemplo: O desemprego

Em uma cidade de milhares de habitantes, somente um individuo está desempregado, isto é um problema pessoal desse individuo. E para entender este problema, talvez tenhamos que observar o caráter dessa pessoa, suas habilidades e suas oportunidades. Porém, quando temos 15 milhões de desempregados num país de 50 milhões de trabalhadores (ou seja, pessoas em idade produtiva, que podem exercer uma profissão), isso já não é um problema de caráter ou de habilidades, mas um problema público, que tem a ver com a estrutura e com um certo funcionamento da sociedade.